Homem cego supera limitações e faz 2º Ironman da vida, em Fortaleza

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– Foi em 1997. Com 28 anos de idade. Eu tinha terminado o curso de Direito em uma quarta-feira. Namorava. Fazia outros esportes além do ciclismo, como surfe e windsurfe. O fato é que, no outro dia, na quinta-feira, eu fui fazer um treino (de ciclismo), bati em um caminhão e caí embaixo dele. Vieram várias lesões na minha cabeça. Como sequelas, ficaram as duas: visão e olfato. Mas por ter sido uma experiência real de morte, eu vi o pneu pegando na minha cabeça, eu tenho essa gratidão por ter sido mantida a minha vida.

Dezessete anos após o acidente que tirou de Paulo Cardoso a visão, ele está prestes a realizar pela segunda vez um feito que parece impossível até mesmo para quem enxerga perfeitamente. Hoje, com 46 anos, Paulo é o único  atleta com deficicência visual entre os 1500 inscritos para o Ironman em Fortaleza, a maior prova de triatlo do planeta, que ocorrerá neste domingo (9).

A emoção de encarar 3,8 quilômetros de natação, 180,2 quilômetros de ciclismo e 42,2 quilômetros de corrida, compara, é próxima a de ter rompido o cordão umbilical dos filhos Maria Clara, de 13 anos, e Pedro, de 10, no nascimento dos dois. E a aventura de Paulo em mais um Ironman, depois de participar da edição de Florianópolis, em 2003, só é possível pela parceria com Plauto Holanda, de 32 anos. O guia acompanha o homem com deficiência a cada braçada, corrida ou pedalada.

– Eu nunca tinha pensado em fazer um Ironman assim, mas ele (Paulo) me ligou e convidou. Falou que queria usar o Ironman como luta para vencer os problemas pessoais. Pensei muito nele. Ele é um cara de coração grande, que só sabe ajudar. Eu vou com ele e vou mostrar que um cara com deficiência pode fazer isso. É muito mais honroso para mim e é um desafio. De 1500 atletas, posso dizer que só eu vou passar por isso como guia. Isso já me deixa animado – confessa o ultramarotonista e personal trainer Plauto, que conheceu Paulo em 2008.

Por conta do choque frontal com um caminhão no dia 19 de junho de 1997, o advogado Paulo Cardoso não lembra todos os detalhes do que ocorreu. Levantou logo depois do acidente. Passou cinco dias no Instituto Dr. José Frota, em Fortaleza, passou por duas cirurgias em São Paulo, tentativas de descomprimir o nervo ótico, e viajou no mesmo ano aos Estados Unidos em busca de reverter a situação de cegueira. Mesmo com o sucesso dos procedimentos cirúrgicos, não voltou a enxergar. Procurou força para recomeçar a vida, de outra forma.

– Como vou pedalar? Velejar? Ler? Estudar? Fazer concursos (de Direito)? Como vai ser minha vida e meu trabalho? Eu pensava. Mas, a gente tendo paciência, tudo se resolve. Eu já fui para Mundial de ciclismo, Parapan-Americano, é um prazer. Agora eu nado também. Velejei em Jericoacoara. Casei. Sou divorciado. Estou namorando. Eu não paro. Não tem nada diferente. É tudo igual – conta.

Fazer o Ironman em Florianópolis era um sonho de quando o advogado ainda enxergava. Em 2001, apareceu o projeto para que ele participasse da prova do ano seguinte, que ele cancelou por um problema pessoal. Em 2003, nada o impediu de  abocanhar um troféu de participação, que exibe logo na entrada do apartamento, na Capital cearense. Com outro guia, à época não conhecia Plauto, ele completou a prova em pouco mais de 14 horas.  E foi nesta prova que atentou para um detalhe fundamental: adotou o step de prancha que o liga ao guia no momento da natação. O novo acessório vem sendo essencial desde então, inclusive para a edição de Fortaleza, com cordão amarrado em uma das pernas do deficiente visual e do guia. 

– Descobri o step de prancha com dois terminais no Ironman de 2003. Antes, tentei nadar lado a lado, o cara tocando no ombro, mas o mar balança tanto que você não acompanha. Isso foi me deixando tenso. Fui para um Mundial no Havaí em 2005 (quando terminou como vice-campeão mundial de triathlon olímpico), outro cara (deficiente visual) usava a mesma coisa. Então, todo mundo chegou a essa solução – explica.

Além do Direito, Paulo começou a estudar Educação Física e se formará na graduação em dois semestres. Foi em uma academia comum que encontrou Plauto em 2008, hoje guia, amigo e de quem foi padrinho de casamento. Em 2009 e 2010, na Itália e Canadá, respectivamente, Paulo disputou mundiais de ciclismo. Em 2013, Plauto competiu na Patagônia Run, completando em 20 horas um dos maiores desafios de corridas de montanha do mundo. O interesse pelos esportes radicais uniu os dois.

Paulo e Plauto treinam há seis meses para o Ironman, em Fortaleza. Dividem-se entre as tarefas do cotidiano e a preparação. Paulo cuida dos dois filhos. Plauto dá aulas em uma academia e tem uma filha ainda pequena. Nos treinos, precisam ter uma sincronia perfeita a cada passo, braçada ou pedalada. Para correr, eles são unidos por um cordão, que amarra dois dedos da mão do deficiente e do guia. Para nadar, utilizam o step no joelho. Pedalam em uma bicicleta especial, a Tandem, que é mais comprida e dá a Plauto a responsabilidade de comandar, trocar marchas, frear e medir quilometragem pela dupla.

– Não tem moleza. Ela (a bicicleta) tem características diferentes. É muito pesada na subida, mas em retas e na descida é rápida. Foi uma grande terapia de quando eu voltei a pedalar – conta Paulo.

– Qualquer movimento que ele faz, eu sinto. Em uma prova muito longa, eu saio com as costas e os braços muito cansados. O Ironman vai ser um desafio, porque ainda tem a corrida e a natação – explica Plauto.

Mas nem tudo é trabalheira. Os dois também nutrem, em comum, o gosto pela música. Paulo arrisca, ao violão, músicas da cantora do Mato Grosso, Vanessa da Mata. Plauto prefere reggae e arranha músicas do grupo Natiruts. Assim, reduzem a ansiedade pela maior prova de triatlo do mundo.

– Favorece muito a gente conseguir conversar durante a prova. Os outros passam, te motivam, mas não podem conversar. Competir junto com ele ajuda a passar o tempo – defende Plauto.

Paulo resume o sentimento de correr na cidade onde vive, neste domingo, e se emociona.

– No Ironman em Floripa, eu tive muito incentivo. A cidade vive o esporte. A nossa cidade também já está vivendo. A emoção de fazer a a prova aqui na minha cidade vai ser bem diferente, de ver minha família, meus irmãos, minha mãe não vai estar porque está internada, mas estará no meu coração. A alegria do pessoal que me conhece gritando o meu nome, isso vai ser um motor não só na chegada, mas naqueles momentos em que você acha que até a cabeça já está fraquejando. Para mim, até a bicicleta vai ser muito cansativo, mas na hora de correr a sensação de estar na minha cidade, de terminar um Ironman aqui, a primeira edição de uma prova que é bonita, muito organizada, vai ser demais.

Fonte: Globo Esporte

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