Microcefalia, aborto e a disputa política sobre a deficiência

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Diante do ressurgimento do debate sobre a autorização do aborto em razão das informações nebulosas sobre a ligação do zika vírus com a microcefalia, é importante pensarmos sobre alguns sentidos que estão por trás dessa questão.
 
O Estado, até agora, não conseguiu coletar os dados e apresentar soluções eficazes e responsáveis sobre a discussão do zika. E as informações na imprensa e nas redes sociais continuam se desencontrando. Desse modo, até o momento, não é possível comprovar a relação de causa e efeito entre o vírus e a microcefalia. O que já se sabe, contudo, é que a microcefalia pode ser mais ou menos grave.  
 
Apesar de a microcefalia ser uma deficiência, ela vem sendo tratada, silenciosamente, como uma doença. No entanto, quando se associa a microcefalia à necessidade de aborto, porque ela seria “incurável”, esse dizer produz alguns efeitos, entre eles o de que a deficiência é algo que deve ser evitado e até combatido, como se as pessoas com microcefalia, ou com qualquer outra má formação, fossem a própria deficiência; como se as crianças com microcefalia tivessem dado errado, num suposto mundo que abriga as pessoas que “deram certo”. 
 
Para pensarmos sobre o modo como as pessoas com deficiência são representadas é muito importante interrogarmos, afinal: o que significa alguém com deficiência? Não se trata de uma tarefa fácil, uma vez que ter ou não deficiência se apresenta como uma questão óbvia. Mas, seria tão evidente assim?
 
Se pensarmos no que constitui o sujeito, chegaremos à linguagem, isto quer dizer que a pessoa com deficiência não é o que ela é em si, porque esse “em si” é uma falsa questão, mas o que se diz sobre a pessoa com deficiência, ou seja, como ela é compreendida.  
 
Para ficar mais claro, podemos pensar na posição-aluno. Ninguém nasce aluno, mas torna-se aluno. Do mesmo modo, uma pessoa não nasce com deficiência, mas se torna, num processo de significação e identificação, em que participam o Estado, a medicina, a mídia etc.
 
Em outras palavras: não existe a deficiência em si, mas um processo linguístico sobre o que é a deficiência. 
 
Os discursos sobre a pessoa com deficiência é que determinarão o que é uma pessoa com deficiência. Esses discursos vão interferir no modo como as pessoas se identificam como alguém com deficiência e no modo como o Estado as identifica, por meio, por exemplo, de políticas públicas.
 
Esse processo de significação / identificação – que se realiza na linguagem – é que produzirá a evidência sobre o que é esse sujeito com deficiência. Portanto, a identidade da pessoa com deficiência é construída na relação com o outro, desde pessoas até instituições.
 
Quando se associa uma deficiência, seja ela qual for, a uma doença, como no caso da microcefalia, o efeito é grave, porque doença se combate, se elimina. Mas quem precisa ser eliminado é o vírus e não as deficiências. Referir-se ao nascimento de pessoas com microcefalia como “uma geração de sequelados”, como fez o Ministro da Saúde, Marcelo Castro (PMDB), é perigoso, principalmente num mundo em que as pessoas com deficiência são significadas como um entrave.
 
E é isso que está sendo dito quando se associa a microcefalia à necessidade de um aborto. E é sobre isso que deveríamos pensar. O aborto deve ser descriminalizado, por uma questão de saúde pública, não pela negação da pessoa com deficiência. 
 
Os efeitos de sentido quando dizemos que é preciso abortar crianças com microcefalia vão significar na própria disputa política e ideológica sobre o lugar que as deficiências ocupam no imaginário social e econômico, uma vez que essas pessoas, supostamente, não geram mais-valia, não somam. 
 
Neste mundo performático, como é o nosso, o valor estético da deficiência é outro fator importante de ser analisado. A microcefalia incomoda mais pelo que ela representa, imageticamente, do que pelo que ela pode ser (afinal, o que é a microcefalia? As informações continuam nebulosas).
 
No mundo da performance, as pessoas tendem a não tolerar o “desvio estético”, atribuindo anormalidade àquilo que a linguagem produz como evidência. 
 
O discurso que produz um sentido de anormalidade para as pessoas com deficiência não é novo e nem se forjou de maneira independente. Ao contrário, ele faz parte de um processo discursivo aberto que tem relação com discursos anteriores que, pela repetição, organizaram uma memória sobre a pessoa com deficiência.
 
No século XVII, as pessoas com deficiência eram identificadas como aberrações, já na década de 30 do século XX, o filme Franks se tornou um clássico do cinema, com um forte conteúdo social e de enorme reflexão para uma sociedade que depois de muitos anos ainda produz um discurso de normalidade. No século XX, pessoas com síndrome de Down também foram significadas como 'menos gente'. 
 
Precisamos pensar no que é dito sobre a pessoa com deficiência, pois é esse dizer que vai se configurar em barreiras simbólicas, discursivas e sociais, atingindo a esfera do político.
 
*Amanda Cotrim é jornalista e mestranda no Labjor / Unicamp, onde pesquisa na área da Análise de Discurso. Amanda é a favor da descriminalização do aborto. 
 
Fonte: CartaCapital

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