“Tive que optar entre ficar cega ou abortar e voltar a ver. Decidi ser mãe”

Márcia Bonfim conta sobre a perda de visão durante a primeira gravidez: suas dificuldades, escolhas e quais adaptações fez para se adequar à nova rotina como mãe

Foto de Márcia, uma mulher morena de cabelos curtos e escuros, com uma menina de aproximadamente três anos no colo
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Confira a matéria de Bárbara Therrie para o UOL VivaBem, sobre Márcia Bonfim, que perdeu a visão durante sua primeira gestação:

Meses após descobrir que estava grávida, Márcia Bonfim Vieira, 39 anos, ficou completamente cega. Os médicos disseram que uma cirurgia recuperaria 80% da sua visão, mas ela precisaria interromper a gravidez para operar. Ela recusou e a seguir conta como é a maternidade na deficiência: “Engravidei aos 15 anos de idade e, dois meses depois, peguei uma infecção (uveíte) e perdi a visão gradativamente. Meus olhos ficaram avermelhados e doloridos, parecia conjuntivite. Com o tempo, minha visão ficou turva, eu via vultos, as coisas duplicadas e, a cada dia, enxergava menos. Em 40 dias, fiquei completamente cega.

Eu me mantive calma diante da situação, achei que fosse um problema passageiro e que voltaria a enxergar. Com cinco meses de gestação, médicos dos Estados Unidos estudaram o meu caso em um hospital de Curitiba e disseram que tinham a solução para eu recuperar 80% da visão.

Eles fariam uma cirurgia a laser, mas, para isso, eu precisaria interromper a gravidez, porque os procedimentos poderiam afetar a criança, deixando-a com sequelas e até mesmo levando-a a óbito. Comecei a chorar, entrei em pânico e respondi: ‘Jamais vou abortar, abro mão da minha visão para ser mãe. Tem uma vida no meu ventre que depende de mim. Se o preço é continuar cega, vou pagar por isso.’

Os médicos me aconselharam a aceitar o tratamento, falaram que eu poderia ter outros bebês no futuro. Respondi que um filho não substitui o outro.

Não foi uma decisão difícil, estava convicta da minha escolha. A Lariany nasceu no dia 30 de julho de 1994. No início, fiquei insegura pensando como cuidaria dela cega, mas depois fiquei tranquila. Uma mãe nasce junto com uma filha. Meu ex-marido e minha ex-sogra me ajudaram no começo e, aos poucos, fui descobrindo a maternidade na deficiência. Enxergava a minha filha com as mãos, tocava em cada parte do corpinho dela para conhecê-la.

Minha audição também era boa. Eu sabia diferenciar quando ela estava chorando de fome, era um choro mais manhoso. Já quando estava com dor, o som era mais alto e estridente.

Casei com um homem com baixa visão e tive outra filha

Eu me separei do pai da Lariany quando ela tinha sete anos. Em 2011, conheci o meu atual marido, o Ivanilson, que tem baixa visão. Ele é cego de um olho e enxerga 5% com o outro. Nos conhecemos durante um treino de goalball –esporte desenvolvido para pessoas com deficiência visual. Nos aproximamos, começamos a namorar e, seis meses depois, fomos morar juntos.

Em 2014, planejamos a gravidez da Lorena. Meu marido tinha receio de que nossa filha nascesse cega e temia pelas dificuldades que poderia ter ao longo da vida, como se locomover, estudar, trabalhar, não poder dirigir. Eu não me preocupava com isso, dizia que se acontecesse, Deus a mandaria para a família certa, nós.

Montei o enxoval dela sozinha. Pedia às vendedoras para separar todas as peças rosas, lilás e brancas. Tocava as roupas para sentir o tecido e o formato para ter certeza que a modelagem era bonita. Evitava peças com muitos botões, zíper e dobras, optava pela praticidade. Organizava o armário dela pelo tipo de roupa e cor. Exemplo: colocava os vestidos lisos de um lado e os coloridos do outro.

A Lorena nasceu no dia 23 de junho de 2015 com a visão perfeita. Nos primeiros 20 dias de vida dela, meu marido e eu fomos para a casa da minha sogra para ela nos ajudar. Minha maior dificuldade foi a amamentação. Um dia, ela se afogou enquanto mamava no meu peito e ficou roxa. Minha sogra viu e a socorreu. Eu fiquei traumatizada.

Quando ela era bebê, eu dava banho nela no meu colo no chuveiro. Cortava a unha da mão dela com o meu dente, não conseguia com a tesoura. Às vezes, ela fazia xixi e cocô na minha mão enquanto trocava a fralda. A hora da comida era uma aventura, a Lorena fazia birra e confesso que não era boa nessa tarefa (risos). Eu acertava a cabeça, o olho, a orelha da bebê, até acertar a boca dela. Ela ficava toda suja, era engraçado.

Eu e meu marido somos bastante participativos na educação dela. Ela tem um tapete do alfabeto em EVA (tipo de borracha). Como é em alto-relevo, consigo saber quais são as letras pelo tato e formar as palavras com ela. Nós ensinamos as cores com base em referências, por exemplo, falamos que o amarelo é o sol, azul é o céu, verde é a árvore. Desenhamos com ela contornando objetos, como moedas; ou partes do corpo humano, como as mãos. Inventamos e contamos histórias conhecidas para ela dormir.

A Lorena tem três anos e sete meses e já entende que temos deficiência visuals. Explicamos a ela que temos ‘dodói’ e não a enxergamos com os olhos, mas com o coração. Ela cuida da gente. Em 2017, fiz uma cirurgia para retirar os olhos e passei a usar próteses. Eu uso bengala e quando saímos, ela me avisa quando tem degrau, escada, calçada.

Nunca me arrependi da minha escolha. Fiquei sem enxergar e, se preciso fosse, ficaria sem as pernas, os braços ou qualquer outra parte do meu copo. Daria a vida pelas minhas duas filhas. A maternidade me ensinou a ser forte e a não desistir, é vivendo que se aprende. Sou cega e feliz. Quebrar obstáculos é o meu esporte favorito.”

Fonte: UOL VivaBem

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