Conheça a história do artista plástico que nasceu com uma deficiência congênita e que, trocando as mãos pelos pés, é hoje um dos 500 artistas que a Associação Pintores com a Boca e os Pés tem ao redor do mundo.
Por Daniel Limas, da Reportagem do Vida Mais Livre
Gonçalo Borges nasceu de uma forma diferente: as pernas para cima dos ombros e, entre elas, os braços. A paisagem de fundo era uma fazenda em Novo Horizonte (SP), e a parteira foi sua avó, numa casa de pau a pique. “Certamente, é uma maneira original de nascer, que marcou minha vida para sempre, mas esse detalhe de design estético não me abateria”, brinca o artista plástico, integrante da Associação dos Pintores com a Boca e os Pés, que nasceu com uma deficiência congênita, causada, possivelmente, por uma febre alta de sua mãe.
Ele conta que suas artes, em todos os sentidos, começaram cedo. Ao invés de ficar em casa sozinho, seus pais o levavam com eles para o trabalho na roça. Esperando que terminassem o trabalho, ele começou a trocar, literalmente, as mãos pelos pés, ao abrir garrafas de água ou café.
Quando Gonçalo tinha três anos, seus pais decidiram morar em São Paulo para buscar ajuda para o seu caso. No Hospital das Clínicas, virou tema de estudo. “Por fim, fizeram uma cirurgia no meu braço esquerdo, próximo ao cotovelo, para facilitar os movimentos. E facilitou mesmo!”, lembra. Brincar de carrinho, bolinha de gude, empinar pipa, soltar balões… Aos cinco anos, Gonçalo fazia tudo isso, porém de uma forma diferente: com os pés, em vez das mãos. E foi nessa época que ele começou a desenhar e pintar. “Nunca fui excluído das brincadeiras com a minha turma. Sempre fui atrevido e briguento e ia atrás quando queria. Porém, sabia de qual brincadeira eu não conseguia participar e saía fora”, relembra.
Aos sete anos, ele vivia em casa de amigos. Pouco parava em casa, o que causava pavor em sua mãe – ele nem sempre se lembrava de dizer onde estava. Aos oito, sua mãe tratou de procurar uma escola e logo começou a ser vítima de preconceito, pois várias negaram seu ingresso. “Em uma delas, a diretoria não aceitou a minha matrícula, alegando que minha presença atrapalharia os outros alunos por causa de minha forma de escrever com a boca ou com os pés”, lamenta Gonçalo.
Até que, por indicação, foi procurar a AACD (Associação de Assistência à Criança Deficiente). Lá, aprendeu a ler e a escrever, e foi incentivado a conhecer materiais de arte, como lápis, pincéis e tinta aquarela. Também praticou natação e mergulho, realizou inúmeros trabalhos manuais e aprendeu datilografia – “ou seria pedilografia?”, brinca. Participou de diversos concursos de desenho e ganhou prêmios.
Ele viveu em regime de internato na AACD durante seis anos. “Só ia pra casa duas vezes ao ano, durante as férias. Quando voltei pra casa, meus irmãos – ele é o terceiro de seis irmãos – não me reconheciam. Nem meus amigos da rua estavam acostumados comigo. Mas logo consegui me entrosar novamente”, lembra. Ele se considera uma pessoa com excelente humor. “Por eu já ter nascido com a deficiência, isso não muda nada meu estado emocional. Mas acredito que aqueles que se tornaram deficientes em algum momento tendem a sofrer mais de depressão. Isso não significa que eu não fique triste. Significa que fico triste como qualquer pessoa”, pontua.
O tempo passou e, quando tinha 17 anos, teve seu nome indicado por um amigo que trabalhava como office-boy em um local que produzia cartões de Natal. “Depois de um tempo, entraram em contato comigo e marcamos um encontro. Quando me viram, foi uma grande surpresa. Não podiam imaginar que eu era a pessoa que eles estavam esperando. A empresa se chama Associação Pintores com a Boca e os Pés. Na época, o Sr. Carlos Henrich, hoje já falecido, era o diretor responsável pela publicação e vendas dos cartões. Ele fez uma visita a minha casa e pediu que mostrasse meu trabalho”, recorda.
Posteriormente, foi apresentado à diretoria da Associação para ser avaliado. Resultado: foi aprovado como artista bolsista e passou a receber para estudar desenho e pintura. Após um ano, uma de suas obras foi transformada em um cartão de Natal. “Daí em diante, não parei mais. Fiz outros cursos na minha área, aprendi a pintar em aquarela e guache, além da tinta óleo, e ampliei muito a minha experiência ao trabalhar com modelos ao vivo, nus e outras situações”, relata.
Enquanto pintava para a Associação, cursou Comunicação Social, com ênfase em Publicidade, e fazia trabalhos para agências de publicidade. Em 2000, passou a ser um membro da Associação, que já atua em mais de 70 países e tem aproximadamente 500 artistas em todo o mundo, e ganhou direito de votar nas decisões da direção. “E é assim, apesar e até graças a minha deficiência, que me fez superar limites e atravessar fronteiras, que vou caminhando pra frente”, orgulha-se. E por falar em situações importantes, ele ressalta uma em especial: “Minha habilitação como motorista foi uma luta de três anos com o Detran”, lembra.
Hoje, Gonçalo, além de artista, dá palestras motivacionais para todos os públicos e pretende, em breve, voltar a dar aulas de desenho e pintura. Além disso, faz questão de ressaltar suas duas principais obras. “Sempre que me perguntam, cito que, como artista, meus dois filhos são as melhores pinceladas que eu já dei. Inclusive, tenho orgulho de dizer que tenho a guarda da minha filha do primeiro casamento”, finaliza.
Este cara é incrível, história digna de um herói nessa sociedade cheia de “limites” e “regras”