Ela é atriz, escritora, professora de línguas, intérprete e poliglota em 32 línguas de sinais. Tem deficiência auditiva e é oralizada.
Por Daniel Limas, da Reportagem do Vida Mais Livre
Quando criança, sempre que saía de sua casa, Sueli achava que todas as pessoas tinham deficiência. Afinal, ela nasceu no meio de uma família com mais de 30 pessoas com deficiência auditiva, assim como ela. Por parte de pai, seus bisavós são surdos. Do lado de sua mãe, alguns tios são surdos. Seus pais têm perdas bilaterais profundas. Após três gerações surdas, seu filho é ouvinte, mas tem a Libras (Língua Brasileira de Sinais) como língua mãe.
Sueli tinha dó das crianças que não sabiam se comunicar por meio de sinais. “E acredito que elas tivessem pena de mim também. Sempre procurei gesticular o mais facilmente possível e elas acabavam por aprender um pouco a língua que eu utilizava. E isso funcionava sem preconceito”, relembra. Essa foi a forma encontrada para ela poder entender as coisas, as brincadeiras e o que estava acontecendo no cotidiano. “Todos aprendiam muito rápido”.
Brincadeiras típicas de crianças, como Ciranda, Escravos de Jó e Esconde-Esconde não são comuns para os pequenos com deficiência auditiva. A escola em que estudou não era especial e na recordação de Sueli, a sua educação não foi nada fácil. Ela se lembra em detalhes dessa época. A diretora era uma japonesa que todos a chamavam de Dona Iá. Ela mantinha a escola com um regime militar, na época da Ditadura Militar. “E eu achava isso maravilhoso, pois tinha uniforme, as meninas usavam saia azul, com meias brancas até o joelho, laço branco nos cabelos, e camisa branca com bolso e distintivo da escola. Tinha marcha, fila, e tínhamos que cantar o Hino Nacional, e eu, claro, imitava o abrir das bocas. Com a mão no peito, fingia que cantava, mas nunca sabia quando terminava. Isso era um grande motivo de chacota dos colegas”, relembra.
Ela também conta que chorava muito por conta dessas e de todas as outras dificuldades. Seus professores sempre davam bronca por ela não conseguir fazer a leitura de textos, o que contribuiu para que repetisse de ano várias vezes, principalmente na disciplina Educação Moral e Cívica. “Mesmo assim, nunca desisti de estudar, pois na escola existiam muitas outras crianças que também sofriam chacotas. Eram os negros, as crianças obesas, e, principalmente, as com muitas espinhas e com os cabelos horrivelmente oleosos escorridos com óculos grossos e dentuças. Essas, na verdade, eram os meus verdadeiros amigos e me ajudavam muito”, explica.
Na casa de Sueli, a comunicação sempre foi feita por meio de uma linguagem de sinais. Sua avó por parte de pai utilizava a língua de sinais italiana e um tio por parte de mãe utiliza um dialeto da língua de sinais. Somente em 24 de abril de 2002, reforça Sueli, que sua família passou a se comunicar por meio da Libras, ocasião eu que foi instituída no Brasil como língua oficial.
Um momento marcante na infância de Sueli foi quando ela, por quatro anos consecutivos, foi coroada rainha de uma associação onde lecionava português. “Isso foi em 1968 e eu tinha quatro anos de idade. As aulas eram direcionadas aos surdos idosos da Associação dos Surdos Mudos de São Paulo, que ficava na Mooca”, orgulha-se. Tudo isso graças aos seus pais que a estimulavam a realizar essa tarefa. “Eu amava dar as aulas. A alegria e o interesse de cada um deles em aprender era gratificante”.
Foi quando criança também que Sueli aprendeu a língua portuguesa, cujo aprendizado começou com as amiguinhas da rua e, posteriormente, com uma professora particular, que sua mãe havia contratado. “Desde que comecei a perceber que o mundo fora de minha família era diferente, eu tive vontade de estar inserida nesta sociedade. Para isso, tinha que saber me comunicar com ela. O que incluia falar. Acredito que ter aprendido a falar foi um milagre e, claro, graças ao meus pais. Alguém lá em cima gosta de mim”, explica.
Hoje, Sueli Ramalho Segala é atriz, escritora, professora de línguas, intérprete e poliglota em 32 línguas de sinais, uma grande estudiosa da língua de sinais. Ela explica que o interesse por esse assunto teve início quando, ainda pequena, percebeu que a língua de sinais não tem concordância nominal e verbal, preposição, artigos, e viu que as escritas de ouvintes tinham este fenômeno. “Eu tentava descobrir porque existia essa diferença, e isso me motivou a pesquisar cada vez mais. Meu pai recebia em nossa casa muitos surdos de outros países, e aprendi com esses estrangeiros que ficavam no Brasil por mais de 6 meses, e eu amava ficar horas ouvindo, alías vendo, eles contarem histórias da cultura de outros países, através da própria língua estrangeira. Nos visitaram pessoas de mais 32 países.”
Desde pequena também – cerca de 3 anos -, que teve contato com as artes. Apesar de seu pai, Antonio Segala, ser católico, trabalhou durante 40 anos em um clube judeu, o A Hebraica, em São Paulo. Lá, começou a ter aulas de teatro e dança. “As aulas não eram em Libras. O professor gesticulava e eu acompanhava conforme os passos”, lembra. Seu pai era ator, tendo feito, inclusive, uma ponta na primeira versão do filme Sinhá Moça. Com o passar dos anos, ela tirou DRT (registro de ator) e se especializou na arte Clown.
Até que em 2003, ela e seu irmão Rimar R. Segala fundaram a Cia. Arte & Silêncio, companhia de teatro cujo objetivo é pesquisar a arte e a cultura de surdos, utilizando as técnicas da mímica e da linguagem do clow, adaptadas à Língua Brasileira de Sinais (Libras). Além deste trabalho, Sueli é intérprete e tradutora, também presta consultoria para empresas com funcionários com deficiência auditiva e, Uni-Sant’Anna, é supervisora de Intérpretes de Língua de Sinais e já atuou como coordenadora de Inclusão e Acessibilidade na mesma universidade. Seu trabalho também pode ser conferido em alguns de seus livros: Dicionário Trilingue de língua de sinais na USP, com o Professor Fernando Capovilla; Língua de Sinais A Imagem do Pensamento (Editora Escala); LIBRAS a Imagem do Pensamento (Editora Escala); ABC em LIBRAS (Editora Panda) e Educando com as Mãos (Editora Mucédula).