O mundo é tão barulhento que a pequena Rafaella abriu o maior berreiro depois de ouvir pela primeira vez, quando tinha um ano e meio. A menina nasceu surda e com um ano e quatro meses chorou quando o aparelhinho implantado dentro do ouvido foi ligado. Após esperar mais de um mês a cicatrização do pós-operatório, era chegado o grande dia de escutar. O aparelho foi ligado baixinho para não assustar, mas mesmo assim não teve jeito.
“Cada um é de um jeito, a minha filha também fez o implante com a mesma idade que a Rafaella, mas adorou ouvir desde o primeiro minuto. Ela inclinou a cabeça para o lado direito (onde foi feito o implante), fechou os olhinhos e sorriu”, disse Claudia Borges, mãe de Melissa, hoje com quatro anos. A operação pode ser feita no Sistema Único de Saúde (SUS).
Rafaella e Melissa participam uma vez por semana de uma espécie de brinquedoteca, onde são estimuladas a aprender os sons. A família também participa da brincadeira – para que o aprendizado também ocorra em casa – e são acompanhadas por assistentes sociais, psicólogos e fonoaudiólogos.
“Quando a minha filha nasceu, foi detectado que ela era surda e que teríamos duas opções: ou ela aprender libras ou fazer o implante. Foi uma decisão muito difícil. Hoje, vejo que a Rafaella tem desenvolvido bastante. Às vezes ela banca de fono e solta um ‘jóia, mamãe!’, quando eu falo algo que ela acabou de aprender”, conta Patrícia Bica, mãe de Rafaella.
Estima-se que de cada mil crianças nascidas, quatro sofrem de surdez congênita, como é o caso de Rafaella e Melissa. No Brasil, cerca de 10 milhões de pessoas têm algum tipo de dificuldade em ouvir, sendo que 350 mil são completamente surdas.
De acordo com Arthur Castilho, otorrinolaringologista do Hospital das Clínicas da UNICAMP, cirurgião do grupo de implante coclear da UNICAMP, o implante coclear é indicado para pacientes com deficiência auditiva de origem neurosensorial profunda e nem todo o paciente com surdez deve fazer a cirurgia. O aparelho introduzido no ouvido oferece informação sonora a indivíduos que não tem mais benefício com o aparelho auditivo comum.
O implante consiste em duas parte: o aparelho colocado cirurgicamente dentro do ouvido e a parte externa. Castilho explica que a parte externa, onde fica a bateria e a captação de sons, transmite para a parte interna a informação por meio de radiofrequência.
Lá dentro do ouvido, o aparelho tem a função de captar esta informação, codificá-la e, por meio de conjunto de eletrodos inserido dentro da cóclea, gerar campos elétricos. Com uma estratégia programada pela fonoaudióloga, estes campos elétricos vão excitar o nervo da audição, que transmite um impulso elétrico para o cérebro.
“Para crianças, o indicado é fazer antes dos dois anos, se possível antes de um e nunca depois dos sete, quando as vias auditivas do cérebro já foram moldadas. A indicação para adultos é somente para aqueles que perderam a audição por alguma doença, como meningite, por exemplo”, disse.
Adaptação
Passar a ouvir de uma hora para outra não é fácil. Há uma infinidade de sons que indicam uma coisa específica, como a sirene ou a buzina vinda lá de longe, ou ainda os vários tipos de gargalhada, palavras e também a voz de cada pessoa. Não é o tipo de coisa para aprender em um único dia, não é só ligar o aparelho que está tudo pronto.
“Muito mais do que ouvir, é preciso aprender a escutar”, disse Castilho. O médico explica que embora o paciente passe, após o implante, a receber os sinais sonoros, ele precisa aprender a identificá-los e a compreendê-los. Ao longo deste processo, crianças e adultos precisam fazer terapia para a estimulação auditiva, para identificar sons e palavras.
A adaptação de adultos é mais fácil que a das crianças. Isso porque o implante, quando feito em adulto, ocorre apenas nos casos em que estes ficaram surdos ao longo da vida. “Normalmente eles se lembram dos sons ouvidos no tempo em que escutavam, e só o fato de ouvir uma música que gostavam já ajuda na adaptação com o som emitido pelo aparelho, que é parecido e não igual ao som normal. Os meus pacientes dizem que o som parece um pouco metalizado”, disse Cristina Peralta, fonoaudióloga do Espaço Escuta, em São Paulo, que atende gratuitamente 26 famílias.
No caso das crianças é mais complicado pois, mesmo para aquelas que voltaram a escutar com um pouco mais de um ano, é preciso recuperar um tempo perdido e que é primordial para o desenvolvimento da audição e da fala. “A gente aprende a falar a partir da interação com os pais. O primeiro ano de vida é o período de maior aprendizagem na vida de uma pessoa. Por isso, indicamos que os pais de crianças surdas falem com seus filhos, pois a fala não é apenas o som, mas o gesto, o gesto facial e esse tipo de coisa vai ajudar a criança depois que ela fizer o implante coclear”, disse Cristina.
Claudia afirma que mesmo antes de a filha passar pela cirurgia ela cantava para a menina no colo. “É tão bom ouvir uma música, fico feliz que ela possa fazer isso agora”, conta a mãe da menina de olhos espevitados que não se preocupa em deixar o aparelho a mostra por causa do penteado que prende o cabelo no alto da cabeça.
Além da dificuldade de identificar os sons, muitas vezes as crianças apresentam dificuldade em reproduzir determinadas palavras. Melissa ainda tem dificuldade de falar o “c”, provavelmente por um problema motor, embora reconheça o som. “Uma vez ela disse que tinha desenhado uma ‘asa’. Eu tinha entendido que era uma casa, mas perguntei: uma asa? E ela respondeu: não, tia. Uma ‘asa’!”, diz a tia da menina Claudene Borges.
Fonte: IG saúde